Mães X Tráfico

Histórias de pais que perderam os filhos para as drogas e a lição de quem conseguiu combater a dependência

Histórias de pais que perderam os filhos para o vício do crack, droga que leva apenas 15 segundos para chegar ao cérebro. Como o efeito dura apenas cinco minutos, o usuário acaba fumando mais uma pedra, gerando rapidamente dependência.  Na luta pela recuperação, parentes de dependentes procuram ajuda nos grupos de apoio e nas comunidades terapêuticas. 

No mundo das drogas, os adolescentes estão mais vulneráveis que os adultos. O jovem Cles Pierre Rodrigues Sabino, 16 anos, está desparecido há quase dois meses. O garoto foi adotado ainda bebê por Agostinho dos Santos, um homem que tenta renovar todo dia a esperança de rever o filho. Em seis tentativas, ele conseguiu encontrar o rapaz dentro de um ponto de venda de droga, mas as últimas buscas resultaram em frustração.

O tráfico recruta jovens cada vez mais cedo. “O fato da punição para os adolescentes serem medidas sócio-educativas e o máximo de cumprimento da pena ser de apenas três anos faz com que os traficantes aproveitem essa pequena punição para recrutar os adolescentes mais cedo ao tráfico”, explica o delegado Tiago Uchôa.

A Polícia da Criança e do Adolescente apura suspeitas muito graves, que envolvem crianças exploradas pelo tráfico. “Denúncias de que nas comunidades pessoas oferecem drogas às crianças e adolescentes para conseguirem serviços sexuais, principalmente das meninas”, comenta o chefe da Unidade de Apoio da Gerência de Polícia da Criança e do Adolescente, Rinaldo Carvalho.

A Secretaria de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos elabora ações para evitar que o crack avance ainda mais. “O Conselho Estadual sobre drogas vai fazer um levantamento para convocar as unidades que trabalham na recuperação desses jovens. Queremos conversar e saber o quer elas fazem e quais as contribuições do Estado para melhorar essas ações”, explica o secretário de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos, Roldão Joaquim.

Grupos de Ajuda
Para as famílias que sofrem com a dependência dos filhos, netos e sobrinhos, a luta contra as drogas parece uma batalha perdida. No entanto, o pânico da impotência deve e pode ser trabalhado em grupos de ajuda aos parentes de dependentes químicos, como é o caso do projeto Amor Exigente, que há 12 anos tem uma unidade no Recife para atender aos casos de pais que não conseguem encontrar uma saída para os filhos.  

Toda quarta-feira à noite, às 19h30, o grupo se encontra no colégio Vera Cruz, que fica no Parque Amorim, no Recife, para falar sobre o convívio com dependentes de drogas em casa. Rúbia Helena Goulart, coordenadora do Amor Exigente, está com o grupo desde quando percebeu que o filho havia perdido o controle sobre o vício.

Apesar da luta de Rúbia e do marido, a dependência ao crack foi mais forte: com apenas 15 anos, o filho do casal morreu vítima da droga. Maurício de Castro Goulart esteve internado para recuperação em São Paulo e voltou ao Recife para passar as festas de fim de ano. Na segunda-feira após o feriado, a foto do rapaz apareceu estampada em um jornal.

“Eu não vi essa foto até hoje. O meu marido escondeu o jornal pra que eu não visse. Não queria ver, porque eu já ia vê-lo no caixão”, comenta Rúbia Helena Goulart.

Os casos de pais que enterram os filhos não são pontuais. O advogado Valdemilson Farias também encontrou o filho de 20 anos morto em um matagal em Abreu e Lima. “Tudo começou com loló, depois cola de sapateiro, em seguida maconha, cocaína, e terminou no crack”, explica. O jovem estudava direito e trabalhava com o pai no escritório da família em Boa Viagem. De acordo com o advogado, nunca houve uma versão oficial para o fato. “Ele foi eliminado com dois tiros na cabeça”, comenta Valdemilson Farias.

Valdemilson e Shirlene Bakun Castro são voluntários no Amor Exigente. Ela também perdeu o filho, em julho deste ano. “No dia 31 de julho ele estava em casa e chegou um carro com três homens armados. Colocaram ele no carro e o levaram”, revela. O filho de Shirlene, Alexandre Antônio Castro, tinha 32 anos e era pai de dois filhos. Ele foi internado cinco vezes e o corpo foi achado na Zona Rural de Caruaru.

Shirlene testemunhou a luta do filho, que dependeu de drogas a maior parte da vida: dos 13 aos 32 anos de idade. “Ele dizia muitas vezes a mim: mãe eu quero sair dessa, eu quero viver com minha família, eu quero casar com minha mulher, viver com meus filhos uma vida normal, trabalhar, mas às vezes eu acho que ele não tinha muita força. Aí caía, recaía”, explica.

Muitos dos parentes das pessoas que freqüentam o projeto Amor Exigente estão com os filhos, filhas ou maridos, vivos. O advogado Valdemilson Farias lembra que para vencer a dependência ao vício é preciso amar acima de tudo. “Sempre digo aos pais que tenham filhos dependentes de drogas: nunca desistam dos seus filhos, nunca, porque se vocês desistirem, com certeza o traficante o adotará”.

Para quem, neste momento, se sente sem forças para virar o placar do jogo contra as drogas, o administrador da comunidade terapêutica, Fabrício Selbmann, lembra que essa batalha não é uma luta perdida. Ele próprio foi dependente e, hoje, coordena a comunidade Recanto Paz.

“O lema é: só por hoje eu não vou usar. Só por hoje, porque hoje, 24h, é o que eu posso modificar. Eu não posso modificar o meu passado, eu não posso modificar o meu futuro. O passado é uma história e o futuro está nas mãos de Deus. O que eu posso modificar é hoje, então, só por hoje eu vou tentar modificar meus atos para ter uma vida melhor”, comenta Fabrício. 

Fonte:http://www.uniad.org.br/index.php 

 Depoimentos: 

“Mãe, a senhora nunca vai me ver nessa vida, nunca vai me levar um copo d’água na cadeia”. As promessas de Leandro a dona Alice não puderam ser cumpridas. Aos 17 anos, cursando a faculdade de Jornalismo e preparando-se para entrar no futebol profissional, ele largou tudo após saber que alguém que estava preso jurou sua família de morte. “A pessoa disse que apenas eu não seria morta, mas que seria expulsa do morro sem roupa e sendo esculachada”, relembra Alice. Diante da ameaça, Leandro ingressou no tráfico com o objetivo de defender a mãe. Em oito meses, o adolescente morreu. “Ele era um ótimo filho, ótimo aluno, ótimo jogador, estudava, trabalhava e fazia cursos”, conta a mãe.


Ela acredita que a ameaça partiu de um caso mal resolvido com seu filho mais velho, que na época também estava envolvido com o tráfico. Questionado pela mãe, Leandro negava seu envolvimento, mas um dia o encontro dos dois em uma das escadarias da favela foi inevitável. Ao ver o filho como um bandido, ela desmaiou. “Quando acordei, já estava no Miguel Couto (Hospital da Zona Sul do Rio de Janeiro)”, relembra. Mesmo desnorteada, Alice diz que nunca rejeitou seu filho. “Muitos me criticavam, mas eu acho que a mãe que tem um filho nessa vida tem de acolher. Não pode negar uma roupa, fechar o coração, porque isso é pior. Tem de buscar ajuda na sociedade, numa psicóloga, numa assistente social”. A perda do filho levou parte de Alice, como ela mesma conta. “Eu fiquei contra o mundo, tentei ir para a igreja, e não consegui. Era muita dor. Mas agora estou conseguindo viver”.

Dona Julieta também aprendeu a conviver com a saudade. O filho de 30 anos morreu em seus braços, após ser baleado a poucos metros da porta de casa. “O Pedro era trabalhador, como todos os meus filhos, ninguém arrumava uma loja como ele”, recorda Julieta. Ela conta que o filho se envolveu com uma mulher que o levou para a vida do crime, onde ficou por três anos até ser assassinado. Ele não usava drogas, mas passou a revender. Negava tudo para a mãe e até a acompanhava na igreja. “Os anos passam, mas a gente não se esquece. Dói muito perder um filho, ainda mais quando ele morre nos seus braços. Eu digo para as mães que têm filhos pequenos tomarem cuidado, porque eu ficava em casa e aconteceu isso. Agora, imagine essas mães que saem para trabalhar e deixam os filhos em casa, sem saber o que fazem?”.

“EU SÓ TINHA DEUS COMIGO”
Foi o que aconteceu com Isabel. Ela criou sozinha oito filhos, trabalhou duro para alimentá-los e vesti-los e perdeu três deles para o tráfico. Com dificuldade para falar e perto dos 80 anos de idade, Isabel relata: “Eles se envolveram com certas amizades que não convinham. Foi uma tragédia. Eles não negavam nada, assumiam tudo que faziam. O primeiro que morreu até entrava com a arma dentro de casa. Eu só tinha Deus comigo”. Ela também chegou a ir à prisão visitar os filhos e sofreu cada instante do envolvimento deles. Mas a tragédia na família passou para a outra geração. Além dos três filhos, Isabel já perdeu dois netos. Um foi assassinado na favela e outro na prisão. “Parece que nunca tiveram mãe na vida, e justamente uma mãe que tanto sofreu para criá-los. E minha filha passou pela mesma dor”, lamenta Isabel.

Na maioria das vezes, entretanto, o envolvimento de crianças e adolescentes com o tráfico é “natural”. Os chefes do crime nas favelas não são estranhos. São, antes de tudo, primos, tios, amigos de infância, companheiros de futebol, irmãos. Foi numa relação assim, de intimidade, que Cecília perdeu dois filhos. O primeiro, João, começou levando o filho de um traficante para a escola. “Eu disse a ele que, começando daquele jeito, o fim não iria ser bom”, pontua Cecília. Como trabalhava fora para sustentar três filhos que criava sozinha, ela deixava o mais velho cuidando dos outros dois, mas quando voltava, ele estava prestando “favores”. Em casa, o menino chegava com bermudas e camisas caras, de marca, um sinal de status na favela.
Depois de ouvir boatos negados por João, Cecília o viu armado e fugindo da polícia em uma das ruas do morro. Numa conversa, ela conta que chorou muito. E ouviu do filho algo que lhe doeu ainda mais: “A senhora trabalha para colocar comida em casa. Não pode me dar as coisas que eu quero”. “Como eu era muito nova, pedi que pessoas mais velhas aconselhassem a ele, mas não adiantou. Aos 16 anos, ele foi morto. Na época, meus outros dois filhos estavam com a avó e eu morava no emprego, pois havia sido expulsa do morro por causa dele. Meu filho nem usava droga. Ele gostava de comer bolo com guaraná”. Tempos depois de enterrar João, Cecília enterrou o segundo filho, também adolescente, vítima do mesmo mal. “Essa vida não vale a pena. Pelo dinheiro que for, não se tem sossego. Nós, mães, não sabemos se o filho está vivo, não conseguimos dormir, descansar, trabalhar. Perder o meu filho me fez perder o chão”.

Quem usou a mesma expressão foi Valéria, ao relatar a perda de Samuel, seu filho de 24 anos. “Meu filho era trabalhador. Estava fazendo um curso de informática quando fizeram aquela covardia com ele”, lamenta. Segundo ela, tudo começou quando a favela foi invadida por uma outra facção, colocando em risco familiares e amigos dos que lideravam o tráfico local. “Nessa época, as mães tiveram que tirar os filhos do lugar. O lema era esse: ‘se você tem amizade com cicrano ou beltrano, vai pagar’. Foi o que aconteceu com meu filho. Ele tinha amigos de infância no tráfico”. Incrédulo sobre o perigo que corria, Samuel recusou-se a sair de casa, pois dizia que era honesto.
Quando alguns de seus amigos mudaram de lado, ele levava informações de uma facção para outra. A atitude despertou o ódio de seus adversários, que o liquidaram com dois tiros na cabeça e um no peito. Seu corpo foi encontrado por um primo que soltava pipa no alto do morro. “A primeira coisa que me perguntava era por que Deus havia permitido que aquilo acontecesse com nossa família, se sempre fomos cristãos tão tementes”, admite Valéria. Sua recuperação foi lenta, por quase três anos alimentou uma fantasia de que o filho havia sobrevivido e estava escondido. O marido dela nunca mais se recuperou, e dois anos depois da tragédia desenvolveu um câncer que o levou à morte recentemente. Hoje, com oito netos, ela diz que só uma coisa a consola. “O Samuel estava afastado do Senhor quando morreu. Mas eu sei que, quando ele caminhava para o vale da sombra da morte, conversou com Deus e se arrependeu de seus pecados. Ele está com Deus”.

DE OLHO NELES
São muitos os sinais que podem levar uma mãe a desconfiar do envolvimento de seu filho no tráfico. O uso de roupas “de marca”, para as quais não teria dinheiro para comprar, conversas sobre facções, referência constante aos nomes dos chefes do tráfico, mentiras. Enterrar o filho é o último golpe de uma guerra que começa cedo. A mãe começa a perder o filho no momento em que não pode dar a ele a atenção necessária, nem o acompanhamento adequado. A maioria dos lares em comunidades carentes e marginalizadas é chefiada por mulheres, que precisam trabalhar para manter a casa. Dificilmente, elas recebem ajuda do pai de seus filhos. Sua rotina começa bem cedo, quando deixa a criança na creche e sai para trabalhar. De volta, normalmente à noite, ela tem pouco tempo para dar atenção ao filho.
Quando a criança atinge a idade máxima para estar na creche, começa o problema. É o que explica Edméia Williams, escritora e idealizadora de um projeto social com crianças em uma grande favela da zona sul do Rio de Janeiro. “Nessa hora, a mãe fica desesperada. Por isso, nosso projeto trabalha com crianças que saem das creches, para cobrir esse período, a fim de que a criança não fique na rua quando não estiver na escola”, conta Edméia. Ela afirma que deixar uma criança sozinha, independente de viver na favela ou não, é sempre um perigo. E, em locais assim, o risco aumenta. “A mãe sai de manhã para trabalhar e fica pensando no filho. Alguma coisa pode acontecer durante o dia e ela não estar ali. A mãe que mora numa comunidade assim vai estar sempre com o rádio ligado, imaginando o que pode acontecer. É muita angústia”.
Enquanto a mãe está fora, meninos e meninas estão sob forte influência do ambiente em que vivem. É muito comum crianças brincarem de polícia e ladrão. Elas vivem nas brincadeiras o papel de traficantes, policiais, viciados, vapores (menores que vendem a droga), X-9 (aquele que delata) e toda sorte de personagens com os quais possam ter tido contato. Segundo Edméia, a realidade delas também está nos desenhos. “Elas desenham, principalmente, a polícia matando ou cometendo agressões. Também fazem helicópteros com policiais apontando a arma para baixo. Isso está na memória deles”.